A força do hábito
Por que é tão difícil se livrar de costumes e dependências
HÉLIO
SCHWARTSMAN
RESUMO
Quase metade das ações que executamos diariamente não
são produto de decisões deliberadas, mas do hábito.
Livros recentes mostram como rotinas se tornam vícios, como empresas
se aproveitam dos costumes dos clientes para aumentar vendas e como mudanças
de hábitos podem reduzir mortes em hospitais.
Qualquer comportamento humano é o resultado da interação
de uma série de variáveis, que incluem desde inflexíveis
características genéticas até detalhes exoticamente
mundanos, como a temperatura em que foi deixado o ar condicionado, passando
pelo mais puro acaso. Se há uma força que se destaca nessa
multidão de impulsos e disposições, é o hábito.
Pesquisadores da Universidade Duke estimaram, num trabalho de 2006, que
mais de 40% das ações que executamos diariamente não
são produto de decisões deliberadas, mas do hábito.
Seria difícil superestimar sua importância.
Hábitos nos permitem executar uma miríade de atividades
intimamente associadas a nosso bem-estar e são uma das principais
forças a movimentar a economia mundial. A capacidade de modificá-los
está intimamente associada ao sucesso de pessoas e empresas.
Do lado negativo, hábitos estão ligados à dependência
de drogas e a outros comportamentos destrutivos e são o ponto a
partir do qual políticos, publicitários e outros segmentos
da mídia tentam (e muitas vezes conseguem) influir em nossas decisões
e manipular-nos o comportamento.
O hábito é basicamente uma rotina neurológica pela
qual executamos uma tarefa de modo mais ou menos automático, como
escovar os dentes, dirigir pelo trajeto de sempre, acender um cigarro
após as refeições ou, no caso de uma tartaruga marinha,
voltar sempre à mesma praia em que nasceu para depositar seus ovos.
Trata-se de uma ferramenta de aprendizado, a forma favorita da natureza
de fixar comportamentos úteis para a sobrevivência. É
pelo hábito que a maior parte dos vertebrados navega pelo mundo.
Nós, humanos, ao lado de alguns outros mamíferos, somos
um pouco diferentes. Temos uma certa flexibilidade e, por isso, não
nos fiamos inteiramente no hábito.
O problema é que o comportamento flexível demanda enormes
recursos atencionais e, portanto, energéticos (o sistema nervoso
central consome sozinho cerca de 25% do oxigênio que respiramos).
Sempre que pode, o cérebro tenta converter atividades rotineiras
em hábitos e, com isso, poupar energia e liberar espaço
para outras tarefas.
VÍCIO
Em termos neurológicos, os gânglios basais parecem ser o
lugar onde armazenamos nossos hábitos. Essas estruturas primitivas
também já foram associadas ao controle de sistemas motores
(elas têm um papel importante na doença de Parkinson) e aos
centros de recompensa, envolvidos no aprendizado e no vício em
drogas.
Um pouco desprezado pelos cientistas, que o viam como algo repetitivo
e aborrecido e que evocava os piores momentos do behaviorismo, o hábito
está dando sua volta por cima. Nos últimos anos, vários
livros detalharam seus mecanismos de funcionamento e destrincharam suas
implicações.
Um recente é "The Power of Habit: Why We Do What We Do in
Life and Business" [Random House, 400 págs., R$ 79] , de Charles
Duhigg. O autor não é cientista nem divulgador de ciência.
É repórter de negócios do "New York Times"
e começou a se interessar pela força do hábito para
modificar comportamentos quando cobria a guerra no Iraque.
No início da ocupação, o país era castigado
por episódios quase diários de manifestações
violentas. Mas havia uma notável exceção. A pequena
cidade de Kufa despontava como ilha de tranquilidade. O responsável
pela façanha era um major do Exército dos EUA, que, após
analisar vídeos de protestos que descambavam para a violência,
resolveu fazer um experimento. Mandou retirar todos os vendedores de comida
da praça de Kufa. Deu certo.
O major identificara um padrão, um hábito organizacional.
Os manifestantes se juntavam na praça aos poucos e iam atraindo
a atenção de passantes, que paravam para observar, engrossando
a multidão. Então apareciam os vendedores de comida. Alguém
gritava um slogan antiamericano, jogava uma pedra ou uma garrafa e o pandemônio
começava.
Sem os vendedores de comida, que haviam se tornado um dos gatilhos da
rotina de violência, o ciclo não se completava. Os passantes,
com fome e sem ter como saciá-la, preferiam ir para casa, desmobilizando
os manifestantes.
"The Power of Habit" é um livro gostoso de ler. Duhigg
escreve bem e recheia a narrativa com casos humanos e boas histórias
sobre empresas, algumas com potencial para nos deixar preocupados, como
veremos adiante. Poderia ter sido um pouco mais meticuloso ao descrever
a ciência do hábito, mas a verdade é que a neurofisiologia
é uma disciplina que não costuma atrair multidões
de fãs.
Na versão simplificada, hábitos se materializam como um
circuito de três fases. Eles são desencadeados por uma sugestão
que funciona como gatilho, disparando a rotina gravada nos gânglios
basais. Essas rotinas podem ser tanto físicas (meter os dentes
numa barra de chocolate) como mentais (lembrar a infância sempre
que se come um biscoito).
Em seguida vem a recompensa, que costuma ser uma boa descarga de dopamina,
conhecida jornalisticamente como molécula do prazer. Trata-se de
um mecanismo de "feedback" positivo.
Isso significa que, quanto mais o usamos, mais ele se solidifica em nossas
mentes. Daí a dificuldade em abandonar velhas práticas,
notadamente as que nos fazem mal. Esse mecanismo se manifesta na forma
de "craving" (fissura), que é o desejo incontido de executar
a rotina despertado pelo gatilho.
Outra implicação é que nunca nos livramos de verdade
nossos hábitos, mesmo quando nos esforçamos para mudá-los.
A rotina antiga é alterada, mas fica armazenada em algum recôndito
de nossas mentes. O bom é que não precisamos reaprender
a dirigir sempre que voltamos de férias. O ruim é que, sob
estresse, alcoólatras e outras vítimas de dependência
podem recair nos velhos padrões.
EMPRESAS
Hábitos não estão limitados a pessoas. Eles também
estão presentes na vida de empresas e organizações.
Pior ainda, empresas e organizações tentam explorar os hábitos
de pessoas, mais especificamente de consumidores, para aumentar seu faturamento.
Um exemplo é o do McDonald's. As lojas seguem uma planta standard
e tentam ser o mais parecidas possível, inclusive nas fórmulas
de tratamento usadas pelos funcionários. A ideia é que tudo
sirva como gatilho para disparar as rotinas de alimentação
dos clientes. Eles se sentirão reconfortados e recompensados. E
quanto mais forem ao McDonald's, mais quererão voltar.
Um caso assustador narrado por Duhigg é o da rede Target. Grávidas
são uma mina de ouro para o comércio, não só
porque gastam muito nos enxovais, mas, principalmente, porque esse é
um momento em que elas (e os maridos) são particularmente vulneráveis
a alterar hábitos de consumo, potencialmente para o resto da vida.
Diante disso, a Target, que vende um pouco de tudo, de móveis e
eletrodomésticos a comida, a preços atrativos, resolveu
que precisava descobrir quais clientes estavam começando uma gravidez
para ganhá-las para todo o sempre.
Para isso contratou o economista comportamental Andrew Pole, que desenvolveu
um algoritmo matemático para, com base em alterações
bruscas nos itens comprados -coisas como vitaminas, loções,
bolsas grandes-, identificar quais estavam grávidas. Aí
era só enviar-lhes os cupons certos, com descontos para lindos
berços e estoques de fraldas, e fisgá-las.
É claro que nada pode ser tão explícito. Muitos ficariam
irritados se descobrissem que seu supermercado xereta o que compram para
ampliar vendas. Assim, a Target não poderia só enviar cupons
de produtos relacionados a bebês para as grávidas. A solução,
genial, foi mandar essa publicidade específica misturada à
de outros itens, fazendo parecer que tudo não passou de feliz coincidência.
A moral da história, que dá razão aos paranoicos,
é que é preciso ter cuidado ao passar o cartão de
fidelidade no caixa. Sua loja favorita pode estar descobrindo seus segredos
mais íntimos.
LESÕES
Esses exemplos mundanos podem dar a impressão de que o hábito
ocupa um lugar marginal em nossas vidas mentais, mas seu papel é
absolutamente central.
Pessoas com lesões nos gânglios basais perdem a capacidade
até de decidir o que vão comer ou de abrir uma porta. Sem
os atalhos proporcionados pelo hábito, ficam mentalmente paralisadas,
impossibilitadas de ignorar os detalhes insignificantes que continuamente
inundam nossas cabeças.
Para Duhigg, o segredo para mudar os hábitos é manter o
gatilho e a recompensa antigos, mas alterar a rotina. Parece banal e de
fato é. O detalhe é que as pessoas nem sempre estão
cientes de quais gatilhos disparam seus costumes.
O que programas como o Alcoólicos Anônimos (AA) fazem é
oferecer condições para que a pessoa perceba que situações
acionam a "fissura" que a leva a beber e substitua a rotina
por outras que também produzam satisfação. A visita
ao bar é trocada por uma reunião ou conversa com o padrinho.
O autor sustenta que, em princípio, por esse esquema de reconhecimento
e substituição, qualquer hábito pode ser modificado.
Aqui está o ponto mais fraco do livro de Duhigg. É claro
que, em princípio, toda rotina automática pode ser alterada.
Pessoas se curam até da dependência de heroína. Mas,
quando vemos as legiões de fumantes incapazes de largar o vício
e exércitos de obesos que não conseguem perder peso, vemos
que fazê-lo tende a ser mais complicado do que sugere a teoria.
Ao não valorizar devidamente as dificuldades, que são epidemiologicamente
aferíveis, Duhigg, se não chega ele próprio a resvalar
na literatura de autoajuda, abre uma avenida para seus promotores.
Cuidado, não estou afirmando que todos os títulos de autoajuda
são lixo. Muitos de fato o são, mas nem todos. Uma honrosa
exceção é "Switch: How to Change Things When
Change Is Hard" [Crown Business. 320 págs. R$ 33 mais taxas]
, dos irmãos Chip e Dan Heath, com várias publicações
na área de negócios.
Embora "Switch" busque auxiliar o leitor a desenvolver estratégias
para alterar seus hábitos e os das organizações de
que faça parte, está calcado em boa ciência. Enquanto
Duhigg caminha pelas sendas da neurociência, os irmãos Heath
apostam na psicologia. Para eles, a dificuldade para alterar uma rotina
decorre do fato de que nossas mentes são o campo de batalha onde
razão e emoção se enfrentam pela supremacia sobre
nossas ações. Enquanto o cérebro racional deseja
uma silhueta esbelta, o emocional está mais interessado em repetir
a sobremesa.
De modo geral, a razão gosta de mudança, enquanto a emoção
prefere o conforto da rotina conhecida. Embora costumemos pensar em nós
mesmos como seres racionais e ponderados, um enorme corpo de experimentos
psicológicos esboça quadro mais complexo.
ELEFANTE
Emoções, para utilizar a imagem do psicólogo Jonathan
Haidt, são um elefante; a razão, o condutor desse elefante.
O animal obedecerá ao piloto, mas apenas enquanto estiver disposto
a fazê-lo. Quando os dois estão de acordo, tudo transcorre
bem, mas, quando divergem, o elefante tende a levar a melhor. Ele, afinal,
é o mais forte e o mais resistente. Há outras circunstâncias,
mais raras, em que o condutor convence o bicho a mudar de ideia. É
aí que se inscrevem as mudanças de hábito.
Embora a prosa dos Heath não seja saborosa como a de Duhigg, eles
também recorrem a casos interessantes, como o de Donald Berwick,
médico e CEO do Institute for Healthcare Improvement.
Berwick queria reduzir o número de mortes por erros de procedimento
em hospitais dos EUA. A taxa de "defeito", isto é, de
erros como não ministrar a droga certa na quantidade e na hora
especificadas, era de absurdos 10% no início dos anos 2000. Na
maioria das indústrias, esse índice é inferior a
0,1%. Isso significava que dezenas de milhares morriam desnecessariamente
a cada ano.
Nada disso era novidade. Os números eram conhecidos e todos sabiam
mais ou menos o que deveria ser feito, mas as mudanças simplesmente
não aconteciam. Foi aí que, em 14 de dezembro de 2004, numa
convenção de administradores hospitalares, Berwick lançou
o desafio. Propôs que, até as 9h de 14 de junho de 2006,
ou seja, dali a 18 meses, as pessoas naquela sala salvassem 100 mil vidas.
A plateia ficou chocada, mas Berwick sugeriu que todos ali se comprometessem
a implementar seis medidas específicas capazes de produzir enorme
retorno. Algumas eram simples, como garantir que a cabeceira da cama de
todos os pacientes estivesse com inclinação entre 30°
e 45°, modo eficaz de prevenir pneumonia, complicação
comum e frequentemente fatal.
Eles concordaram, mas não foi fácil. Aceitar as medidas
implicava reconhecer que os hospitais tinham taxa elevada de erros e que
produziam mortes desnecessárias, um pesadelo para os departamentos
jurídicos. Mas a coisa ganhou força e, dois meses depois
do discurso, mil hospitais haviam formalizado adesão à campanha.
Em 14 de junho de 2006, Berwick anunciava que os hospitais participantes
da campanha das 100 mil vidas tinham evitado coletivamente 122.300 mortes,
segundo cálculos dos epidemiologistas. Mais importante, a maior
parte das seis medidas propostas havia sido institucionalizada. Os hospitais
dos EUA se tornaram lugares um pouco menos perigosos.
Para os irmãos Heath, a receita da mudança de hábito
tem três partes. Primeiro, dirija-se ao condutor do elefante. Muitas
vezes, o que parece resistência é apenas falta de clareza.
No caso de Berwick, as instruções ao piloto vieram na forma
das seis intervenções.
Motive o elefante. O que parece preguiça pode ser só exaustão.
O condutor não consegue opor-se ao animal por muito tempo, assim,
é preciso colocar o lado emocional para trabalhar a favor da mudança.
No exemplo, a motivação é salvar 100 mil vidas em
18 meses.
Modele o caminho. O que parece falha de caráter é às
vezes só problema situacional, quando você altera um bocadinho
as coisas para que a mudança pareça mais factível,
ela se torna mais provável. Berwick modelou o caminho ao criar
um sistema simples de adesão que logo se tornou corrente.
TRÁGICO
David DiSalvo, autor de "What Makes Your Brain Happy and Why You
Should Do the Opposite" [Prometheus, 280 págs., R$ 43] , tem
visão mais trágica. Para ele, o cérebro evoluiu para
tornar-se uma máquina de fazer previsões. Para tanto, especializou-se
em identificar padrões, antecipar ameaças e forjar narrativas.
Ele ama a estabilidade e tem horror à incerteza e à imprevisibilidade,
ameaças existenciais.
O problema é que, ao desenvolver a capacidade de se defender dessas
supostas ameaças, nossos cérebros deixaram para trás
subprodutos que jamais conseguiremos desentranhar de nossas atitudes e
nossos pensamentos. Exemplos dessas inclinações incluem
nossa obsessão por certezas, a confiança excessiva na memória,
a disposição para achar que tudo tem um significado especial,
a vontade de estar no controle etc.
Embora esses vieses deixem nossos cérebros felizes, isso nem sempre
serve a nossos interesses no mundo moderno. Lembre que nossas mentes foram
criadas para operar no paleolítico, não em sociedades tecnológicas
e plurais.
Sintomaticamente, o livro de DiSalvo é o que reúne menos
exemplos. É também o que traça panorama mais completo
dos recentes achados científicos sobre aspectos salientes da natureza
humana. O hábito é um dos personagens, mas, como estamos
num romance sem protagonistas, não faz tantas aparições
quanto nos outros livros.
Para o autor, os últimos achados da neurociência e da psicologia
cognitiva desferem um golpe na literatura de autoajuda, ao mostrar como
a maioria dos conselhos são vazios e até fraudulentos. O
caminho, diz DiSalvo, é usar a ciência para entender por
que nossos cérebros encerram vieses que nos colocam em encrencas
e por que temos dificuldade em sair delas.
Curiosamente, DiSalvo finaliza o livro com 50 pérolas de sabedoria
extraídas de um corpo que parece consistente de evidências
científicas. São conselhos como "cuidado com nossos
vieses", "termine o que começou", "crie hábitos
úteis" etc. -um fecho paradoxal para um autor tão crítico
à autoajuda.
Uma explicação possível é que, entre os pendores
inextinguíveis do gênero humano, estão o medo da incerteza
com o futuro e a necessidade de estar no controle, que, juntos, asseguram
que, enquanto os humanos forem humanos, haverá interesse pela autoajuda.
As melhores evidências disponíveis provam que esse é
um hábito que não conseguiremos mudar nem com o auxílio
de muita ciência.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/47879-a-forca-do-habito.shtml